Escritora e artista plástica

Jennifer Perroni

Escritora e artista plástica

Jennifer Perroni

Nem feliz, nem triste

Era alguma coisa suspensa entre dois universos aos quais não pertencia, nem alegre, nem triste, apenas algum ponto entre dois extremos que jamais se encontram. Não sabia exatamente o que queria, nem se queria e, por conseguinte, se continuava a querer. Era algo assim, entre meio termos, meio espaços, meio acertos. Nunca inteiro. Nunca ciente. Nunca senhor. Também não era rebelde, nem subserviente. Pois qualquer dessas opções implicaria escolha. E isso era coisa que não fazia. Era apenas aquele corpo meio rijo, meio mole em meio a uma procissão de cegos, mudos e surdos.
Avenida Paulista – Performance a céu aberto, 2016foto do acervo pessoal da autora
Não reclamava, claro que não. Também não havia qualquer sinal de resignação. Era simplesmente um oceano de apatia, mover uma pilha de papel de lado para o outro, organizar as canetas no copo que jamais serviu para matar a sede de quem quer que fosse. Por sinal, foi justamente essa a imagem que lhe causou dor. Um fato absolutamente insignificante em um dia com igual significado. Ou seja, nenhum. Mas naquele dia que após sentar à mesa de trabalho percebeu que o porta-caneta que todos os dias arrumava era um copo. Talvez a sede que lhe queimava a garganta naquele instante que tenha tornado a inconsistência do copo evidente. Um copo, meu Deus, um copo. Comprado em algumas dessas lojas onde nada tem o custo do valor anunciado. De qualquer forma eram sempre os mesmos olhos puxados e cabelos lisos atrás do balcão. Comprou o copo lá. Em qualquer dessas lojas absolutamente iguais. Um copo como qualquer outro. Não lembrava o motivo da compra. O que fez com que entrasse na loja e escolhesse um copo, apenas um. Chegou ao trabalho carregando o pequeno embrulho. Chegara cinco minutos atrasado por conta da parada na loja onde nada custava o que deveria. Tão logo chegou, pôs-se a recolher as canetas que invariavelmente migraram para outras mesas ao longo do dia anterior. Havia aprendido a colocar nome nas canetas, o que não impedia que as pegassem, mas, pelo menos, possibilitava que fossem reconhecidas e devolvidas ao devido dono. Era isso! Das canetas era senhor, sobre elas detinha propriedade, eram suas e cabiam no copo que havia comprado pessoalmente para o fim de guardá-las. O copo, portanto, deixou de ser copo e, sem jamais ter cumprido a função para o qual foi criado, tornou-se guardião de canetas e lápis. Mas em um dia absolutamente insignificante como todos os demais, a dolorosa verdade veio à tona: o copo que jamais matou qualquer sede não é um copo! Copos têm uma função esplêndida. Servem de continente para o sagrado líquido que aplaca a sede de homens. E também de cães. Pois lembrou de uma ocasião em que passava pela rua e um cachorro deitado na calçada parecia morrer de sede. Ofegava. Um calor desesperador mesmo a sombra. Não havia qualquer poça de água por perto. Entrou no bar e pediu uma vasilha com água, explicou sobre o cão que morria à calçada. A moça de rosto apático atrás do balcão deu-lhe um copo de plástico com água dentro. Olhou para o copo e pensou o que deveria fazer: entregar na mão do cachorro? Resignado voltou para a calçada e colocou o copo diante do cão que instantaneamente ficou de pé e com uma habilidade surpreendente conseguiu beber a água. A sede opera maravilha nos seres. Faz até com que um canino consiga beber de um copo de plástico. Que pessoa sedenta não consegue compreender a habilidade instantânea? Algumas pessoas que passavam na rua aplaudiram o ato. Como se matar a sede de um animal moribundo fosse algo digno. Não era. Fechou a cara. E deixou que o cão cuidasse de si próprio. Sequer olhou para as pessoas que sorriam com os olhos em sinal de aprovação. Talvez esperassem sorrisos de volta, o que certamente não obtiveram. E agora, à mesa de trabalho, lembrava do fato. Até mesmo um copo de plástico em uma padaria suja foi capaz de cumprir a função de matar a sede. Já o copo que tinha diante de si não trazia qualquer função além de manter o rebanho de canetas reunido. E nem isso era capaz de realizar, visto que todos os dias precisava recolher as canetas que misteriosamente apareciam nas mesas de outras pessoas. Um estojo teria a mesma finalidade e ainda poderia ser guardado dentro da gaveta de forma que as canetas ainda estariam lá quando chegasse na manhã seguinte. Coisa que o copo jamais conseguiria, mas isso era óbvio, não era sua função. Um copo jamais será um bom cão pastor. Era apenas como um corpo copo que guardava canetas. Sem qualquer objetividade nisso.

Assim como o dono

Fim

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Jennifer Perroni

Escritora, artista plástica, mãe. Não necessariamente nessa ordem.

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