Era alguma coisa suspensa entre dois universos aos quais não pertencia, nem
alegre, nem triste, apenas algum ponto entre dois extremos que jamais se
encontram.
Não sabia exatamente o que queria, nem se queria e, por conseguinte, se
continuava a querer. Era algo assim, entre meio termos, meio espaços, meio
acertos. Nunca inteiro. Nunca ciente. Nunca senhor. Também não era rebelde, nem
subserviente. Pois qualquer dessas opções implicaria escolha. E isso era coisa
que não fazia. Era apenas aquele corpo meio rijo, meio mole em meio a uma
procissão de cegos, mudos e surdos.
Avenida Paulista – Performance a céu aberto, 2016 – foto do acervo pessoalda autora
Não reclamava, claro que não. Também não havia qualquer sinal de resignação.
Era simplesmente um oceano de apatia, mover uma pilha de papel de lado para o
outro, organizar as canetas no copo que jamais serviu para matar a sede de quem
quer que fosse.
Por sinal, foi justamente essa a imagem que lhe causou dor. Um fato
absolutamente insignificante em um dia com igual significado. Ou seja, nenhum.
Mas naquele dia que após sentar à mesa de trabalho percebeu que o
porta-caneta que todos os dias arrumava era um copo.
Talvez a sede que lhe queimava a garganta naquele instante que tenha tornado
a inconsistência do copo evidente. Um copo, meu Deus, um copo.
Comprado em algumas dessas lojas onde nada tem o custo do valor anunciado.
De qualquer forma eram sempre os mesmos olhos puxados e cabelos lisos atrás do
balcão. Comprou o copo lá. Em qualquer dessas lojas absolutamente iguais. Um
copo como qualquer outro. Não lembrava o motivo da compra. O que fez com que
entrasse na loja e escolhesse um copo, apenas um.
Chegou ao trabalho carregando o pequeno embrulho. Chegara cinco minutos
atrasado por conta da parada na loja onde nada custava o que deveria.
Tão logo chegou, pôs-se a recolher as canetas que invariavelmente migraram
para outras mesas ao longo do dia anterior.
Havia aprendido a colocar nome nas canetas, o que não impedia que as pegassem,
mas, pelo menos, possibilitava que fossem reconhecidas e devolvidas ao devido
dono.
Era isso!
Das canetas era senhor, sobre elas detinha propriedade, eram suas e cabiam
no copo que havia comprado pessoalmente para o fim de guardá-las.
O copo, portanto, deixou de ser copo e, sem jamais ter cumprido a função
para o qual foi criado, tornou-se guardião de canetas e lápis.
Mas em um dia absolutamente insignificante como todos os demais, a dolorosa
verdade veio à tona: o copo que jamais matou qualquer sede não é um copo!
Copos têm uma função esplêndida. Servem de continente para o sagrado líquido
que aplaca a sede de homens. E também de cães.
Pois lembrou de uma ocasião em que passava pela rua e um cachorro deitado na
calçada parecia morrer de sede. Ofegava. Um calor desesperador mesmo a sombra.
Não havia qualquer poça de água por perto.
Entrou no bar e pediu uma vasilha com água, explicou sobre o cão que morria
à calçada. A moça de rosto apático atrás do balcão deu-lhe um copo de plástico
com água dentro.
Olhou para o copo e pensou o que deveria fazer: entregar na mão do cachorro?
Resignado voltou para a calçada e colocou o copo diante do cão que
instantaneamente ficou de pé e com uma habilidade surpreendente conseguiu beber
a água.
A sede opera maravilha nos seres. Faz até com que um canino consiga beber de
um copo de plástico. Que pessoa sedenta não consegue compreender a habilidade
instantânea?
Algumas pessoas que passavam na rua aplaudiram o ato. Como se matar a sede
de um animal moribundo fosse algo digno. Não era. Fechou a cara. E deixou que o
cão cuidasse de si próprio. Sequer olhou para as pessoas que sorriam com os
olhos em sinal de aprovação. Talvez esperassem sorrisos de volta, o que
certamente não obtiveram.
E agora, à mesa de trabalho, lembrava do fato. Até mesmo um copo de plástico
em uma padaria suja foi capaz de cumprir a função de matar a sede. Já o copo
que tinha diante de si não trazia qualquer função além de manter o rebanho de
canetas reunido. E nem isso era capaz de realizar, visto que todos os dias
precisava recolher as canetas que misteriosamente apareciam nas mesas de outras
pessoas.
Um estojo teria a mesma finalidade e ainda poderia ser guardado dentro da
gaveta de forma que as canetas ainda estariam lá quando chegasse na manhã
seguinte. Coisa que o copo jamais conseguiria, mas isso era óbvio, não era sua
função.
Um copo jamais será um bom cão pastor.
Era apenas como um corpo copo que guardava canetas. Sem qualquer
objetividade nisso.