Escritora e artista plástica

Jennifer Perroni

Escritora e artista plástica

Jennifer Perroni

Metafísica dos livros

"Há metafísica bastante"... em arrumar a estante de livros...

Nenhuma tarefa mais impregnada de Misticismo que organizar os livros na estante (peço inclusive perdão às amigas bibliotecárias se acaso a analogia for inapropriada). Mas a mim parece que toda mudança em minha vida envolveu alguma (des/re)organização de livros em alguma escala. 

Seja a limpeza básica de final de ano que resulta em famigeradas pilhas (lidos / para ler / por que diabos eu comprei esse?). Seja por mudança de casa, fins de relacionamentos (seu? meu? nosso? não, isso é coisa que não existe mais), começos, pausas. Mas fato é que a arrumação da estante talvez tenha sido a única constante nos diferentes momentos e cenários.

Com o passar dos anos passei a atribuir honrarias de sortilégio à tarefa, misticismo mesmo, magia da braba. Atualmente tenho dado a fazer feng shui. Constelação sistêmica. Oráculo. Pego uns livros e boto num lugar para trazer boa sorte.

No momento estou na arrumação de final/início de ano/vida/fase. E diante da estante vazia (espalhei todos os livros no chão e sinto-me feito ilha cercada de capas por todos os lados)  sou apanhada em cheio pelo misticismo que impregna todas as páginas.

O primeiro desafio é escolher qual livro terá a honra de ser o abre-alas da estante. É lugar de destaque, o primeiro da primeira prateleira. Aquele sobre o qual a inesperada visita deitará os olhos.

Certamente se fosse eu bibliotecária essa não seria uma questão fundamental. Eu seguiria as regras de alguma agência reguladora de prateleiras e não precisaria pensar muito sobre o tema. Mas eu, pobre mortal, do tipo que atribui misticismo a tudo, não tenho qualquer regra a qual atribuir o peso da escolha.

Talvez devesse escolher algo imponente, do tipo que atenda a gregos e troianos, que impressione a todos, desde a vó até visitantes acadêmicos. 

– Gregos, vó. Lá da Grécia
– Antigona.
– Visitei ano passado
– Cavaleiros do Zodíaco!

Mas eu sou ousada e por isso faço da organização da estante uma armadilha, nem sempre lógica! Gosto de ir colocando alguns títulos em destaque e de perceber onde os olhos se demoram um pouco mais ou quando o reconhecimento espalha pelo rosto na forma de sorriso. Em qual prateleira a mão não resistirá ao movimento de sacar um livro?
Ou ficará o tempo todo presa no bolso como se nada visse de atrativo?
E aquele? Não? Nem esse?

Mas eu finjo que não presto atenção as escolhas e que passo distraída de um lado para o outro fazendo de conta que não estou sendo dissecada. Pois as escolhas do inesperado visitante significam também o olhar sobre minhas prateleiras. Seremos julgados lado a lado. As escolhas dele e as minhas. 

Em alguns casos sou ainda mais mordaz e espalho estrategicamente os livros pela casa. Não necessariamente os favoritos, mas os mais instigantes. São pequenas pistas. Armadilhas. “Sigam por aqui, crianças, eu tenho doces”.

Como aquela coletânea de poesia erótica escrita por freiras em conventos portugueses do século XVI (sinceramente tenho sérias restrições a quem quer que passe por esse título sem esboçar nem ao mesmo um sorriso)

ou Ismália que em edição aquarelada parece sempre perguntar a quem passa: e o seu favorito, qual?

E quando perguntam o último que li?

Que pergunta mais íntima. Sinto como se quem a fez quisesse ver meu seio, direito, aquele sob o qual uma pequena tatuagem me revela inteira (ainda bem que está escrito em grego arcaico que é para ninguém se meter a me entender assim, profundamente).

Será que devo responder a pergunta ou à pessoa? Alguém do trabalho? Nesse caso melhor citar algo pomposo. Será do Yoga? Ou a vizinha que sempre envia mensagem do Augusto Cury no grupo? (se for esse último o caso respondo com qualquer um desses títulos que as pessoas teimam em dar de presente quando sabem que gosto de ler…)  

Minha nova paixão é assunto para poucos. Desconverso. Falo sobre aquele outro que li quando andava de trem, do autor espanhol. Escreve lindamente. Já leu? Pois devia!

Será que eu deveria organizar por ordem cronológica? De qualquer forma Cavaleiros Do Zodíaco sai na frente qualquer que seja a conversa. Habilidade universal certamente.

Juro solenemente que não farei nada de bom não começarei com Harry Potter! Não faço isso há anos!!!

Ou talvez a ordem alfabética resolva a questão: astrologia ou aromaterapia, quem vem primeiro? Antigona! Benditos gregos, sempre na frente.

E há aquela coleção pequena, reservada à intimidade do quarto e que repousa sobre o criado-mudo. Esses eu decoro e recito quando o silêncio é um propício convite à poesia. Nessa hora luzes se apagam e reconhecendo a metafísica das palavras atribuo ao momento todo sortilégio. Acendo velas, incensos, taças de vinho (minha humilde oferenda à Baco).

Mas essa coletânea é privilégio de poucos. A maioria sequer passa da primeira prateleira.

E, por sinal, por qual livro começar mesmo?


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Jennifer Perroni

Escritora, artista plástica, mãe. Não necessariamente nessa ordem.

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  1. BIBLIOTECNICAMENTE
    ESPALHO
    DISPERSOS DESEJOS
    SOB OLHARES D’OUTROS
    MÃOS EM VÃOS
    INICIADOS
    IMPREVISÍVEIS
    EM SEDUTORAS FACES
    VERSOS
    HISTÓRIAS
    AGORA
    HORAS
    SEM FIM
    DESORDEM
    EMPRATELEIRADA
    ORA
    LETRADA
    COTIDIANA
    CEGA
    MENTE
    CALA
    CORAÇÃO
    TURVA
    A PAISAGEM DORMENTE

    Metafísica de sentidos
    sentidos ordenando
    palavras em prateleiras
    inimagináveis…

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