Sou uma acumuladora!

Sei disso desde o dia em que comecei a contrabandear conchinhas da praia para casa no baldinho. Coletava tantas quantas fosse possível esconder do cuidadoso olhar materno.
Uma vez me disseram que não devemos tirar nada de Iemanjá sob o risco de deixar zangada a rainha do oceano. Uma tolice sem precedentes em minha modesta opinião. As conchinhas são como ondas. Vêm todas da mesma eternidade. Iemanjá não coloca número em seus domínios. Ela não é uma humana boba, nem fica zangada por conta de infinitos. Diferente de mim, ela não acumula conchinhas.
Obviamente que essa compulsão foi se tornando maior com o passar dos anos. Dizem que é assim na vida, tudo aquilo que não prestamos atenção cresce. No meu caso, a propensão a acúmulos!
Com o tempo passei a colecionar pequenas pedras de minhas viagens. Pedaços de chão que trazia comigo das andanças. Talvez reflexo da vontade de carregar cada pedaço do mundo que o pé tocou. Coisa de colecionador, não há muito o que entender, no máximo a gente aceita e segue em frente.
Mas cada pedaço de chão que eu trazia comigo, contava uma história. Como aquele pequeno quartzo que peguei logo antes de ser resgata no Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros (sim, história real que um dia conto, minha propensão a andar perdida já é lendária). Ou uma pequena lasca do Monte Parnaso que meus olhos não acreditavam ter diante de si.

E assim, em cada jornada voltava com bolsos cheios de pedras. Pedaços de chão com os quais passei a desenhar meu próprio mosaico do mundo. Mania estranha que Virgínia* certamente entenderia. Mas as pedras, como Virgínia também descobriu, são carga mais pesada do que o corpo suporta. Por conta disso passei a acumular flores.

Como aquela flor de algodão, colhida na curva de alguma estrada. Parecia até árvore de nuvem na terra. Todos os dias me faz pensar que o céu está mais perto do que parece.
As flores trouxeram certa leveza a minha compulsão que nem por isso deixou de ser compulsiva. E assim cada carimbo no passaporte passou a ser acompanhado de pétalas. Cada viagem mais e mais coleções.




Lavandas coletadas de algum lugar mais frio que o corpo suporta. A lamparina serviu de base para o estranho e seco conjunto (será que sou a única a ver beleza em tudo o que um dia já foi vivo?)

Dias desses fui acometida por certa loucura que, ao que parece, de tempos em tempos aflige os acumuladores. Arranquei as flores secas de seus esconderijos . Catei todas as pedras do mosaico. Desfiz meu mundo.
As pedras usei para construir meu jardim (e reconheço que exista certo romantismo aí, não há como negar, sou romântica). Prefiro um mundo no qual eu possa pisar. Mosaicos são bonitos, mas não há muito que se possa fazer com eles além da mera contemplação.
As flores espalhei em telas. Aquarelas. Quadros. Colei nas folhas de caderno. Retirei toda vida que pude das pétalas secas. E juro por Deus que resisti bravamete quando, em um ímpeto, tive vontade de colar no caderno as dezenas de joaninhas que se abrigavam nas pétalas das flores secas. Foi quando descobri que todo acúmulo carrega mais do que pretendido.

Não sei se ter dado fim às coleções fez de mim menos acumuladora. Ou talvez tenha me tornado ainda mais obsessiva ao espalhar meus troféus pela casa.
Mas agora, ciente de meu acumulo, ando mais comedida. Não carrego mais pedras. Não me apego facilmente a qualquer flor. Resolvi fazer o tipo difícil. Insensível. Nada mais de reparar em flores no caminho, nem mesmo ruas ladrilhadas com pedrinhas de brilhantes.
Só sei que de meu pedregoso jardim eu vejo o mundo. Cheio de acúmulos. Eternidades . E flores.

** Virgínia Woolf poeta, escritora, ensaísta e editora britânica que se matou em 1941 enchendo os bolsos de pedras e se atirando ao rio Ouse.