Escritora e artista plástica

Jennifer Perroni

Escritora e artista plástica

Jennifer Perroni

Picolé do China

Era como o apanhador de sonhos em um campo de centeio... Alimentando infâncias com picolé

Esse é o China.

Ou assim é pelo menos como todos o chamam de tantos anos vendendo o “picolé do China” na praia…

O antigo hino ainda ecoa em meus ouvidos, e juro que sou capaz de identificar a voz dele em qualquer praia do mundo de tantas vezes que eu o vi passar (ô china, ô china, hey picolé do china!)

Eu o conheço desde criança, lembro que sempre tive um pouco de medo dele. O China tinha sempre a cara meio fechada, meio zangada, meio sério, meio triste. Gostava mais de comprar picolé com um outro senhor, o Zé, que sempre tinha o bolso cheio de balinhas Juquinha e fazia graça para a criançada…

Faz algum tempo, estava eu na mesma praia e me deparei com o China sentado em frente ao mar. Parecia até um menino olhando as outras crianças.

Engraçado como algumas pessoas não mudam. O China de hoje é exatamente o mesmo da minha infância. Como é possível? Para onde foram os anos? Será que realmente passou tanto tempo assim? Talvez tenha sido ontem…

E assim, como quem não quer nada, fui me aproximando. Devagar. Puxa assunto. Quanto tempo… Diz que lembra de mim, ainda pareço a mesma…

Pode ser que ele tenha me confundido com alguma outra criança da praia. Ou talvez realmente lembre. Ou talvez sejamos como duas crianças olhando o mar.

E assim entre o som de uma onda e outra arrebentando na areia descobri que ele se chama Silvio, nasceu em 1939 na Amazônia.

Diz com voz triste que foi trazido para cá aos oito anos de idade por um coronel que gostou muito dele…

Nunca mais encontrou ninguém da família. Teve que construir uma família aqui e foi o que fez, teve quatro filhos e cinco netos.

Hoje tem 78 anos, é aposentado do governo do estado.

E passa os dias em frente ao mar. Alimentando o sonho das crianças com sorvete…

Ele me falou sobre a esposa que morreu há alguns anos. E sobre o amor, amor desses em que as pessoas são companheiras para a vida. Onde ninguém é dono, mas parceiro…

Antes de ir me fez prometer que nunca deixaria ninguém que machucar.

Prometi a ele e a mim mesma…

E ele foi embora sem ver as lágrimas em meus olhos. Melhor assim…

Lágrimas pela criança que ele não pode ser, e também pela minha criança.

Lágrimas de alegria e um cadinho de tristeza

Depois que ele foi embora choveu. Fez todo sentido. Eram lágrimas do céu

** Há algumas semanas fui informada sobre o falecimento do China… Descanse em paz. Que sua infância, subritaída, possa um dia ser honrada e reverênciada.

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Jennifer Perroni

Escritora, artista plástica, mãe. Não necessariamente nessa ordem.

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